terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Esses dias

Esses dias andam cheios
De papéis, de contas, de procuras e respostas insatisfatórias,
Cheios de pouca vida.

Os caminhos, nesses dias, são de chuva e sol
— inutilmente chuva e sol, quando há apenas uma sala e uma máquina conectada à rede
E tão só restos de felicidade espalhados no tempo.

Neste momento, por exemplo,
Este poema é um parto obscuro
Que escondo dos meus consortes,
Mergulhados que estão nesses dias
E na anotação de seus êxitos.

Então eu lhes peço licença
— a esses dias que me desejam atarefados —
Para beber cerveja e fumar erva,
Contemplar a praia, o riso das pessoas,
Cantar um samba que nem sei.

Mas ainda isso não me evitaria máquina.

Pois nas fábricas de cerveja e nas plantações clandestinas
Esses dias andam cheios de papéis, fazem contas,
Perguntam pelos cantos sobre a hora de ir embora.

Somos, em tudo, engrenagens
Dessa imensa fábrica implacável de felicidade.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Sal

Ronaldo e Valéria chegaram à praia de Boa Viagem por volta das quatro da tarde. A essa hora, quase não havia banhistas na areia, o que deixava o caminho livre para uma andada tranquila na companhia do mar. Tinham parado o carro em frente ao Edifício Portugal, um dos trechos preferidos da zona sul. Ela, blusa branca de renda, bermuda verde-jade, chapéu bege de renda fina; ele, bermuda pescador de sarja cinza, sandálias de borracha azul e camiseta azul-piscina.

A água salgada e seu balé de espumas tinham algo do movimento do infinito, passado e futuro igualmente longínquos, e ele preferia ver a tarde escurecer na praia ao tumulto dos blocos, multidão, bebedeira, suor, barulho. Desde criança, sua vida foi regida pelo ritmo manso das tardes solitárias. Cedo, o pai se ausentara, e o amor zeloso e excessivamente protetor da mãe o colocava sempre como um adorno muitíssimo delicado, desses cristais que não se quebram justamente pela falta de uso.

Acostumou-se à companhia da mãe para tudo: dedicada, ela o levava à escola, antes do trabalho, indo buscá-lo logo ao meio-dia para almoçarem juntos em algum restaurante próximo. Depois, deixava-o no reforço, para, logo em seguida, com a ajuda de uma vizinha, seguir para a natação às segundas e às quartas e ao futebol às terças e às quintas. Nas sextas, passava a tarde com a mãe, geralmente no escritório onde ela trabalhava.

Teve poucos amigos e menos amores ainda, de modo que dedicou a Valéria, seu então único grande afeto, um sentimento terno, compassivo, cheio de apegos aos menores detalhes. Acostumado com o tratamento respeitoso do escritório da mãe, vestia de formalidade os mais íntimos contatos: à mesa, quando levava sua amada para jantar em um tradicional restaurante da cidade, fazia questão de manter uma conduta inatacável, com talheres e guardanapos em seus devidos lugares.

E foi justamente por causa desse seu caráter grave que se achavam ali. Queria eternizar um momento, gravar os dias dali em diante com a memória de um amor maior do que ele próprio. Queria casar-se com Valéria, viver com ela para sempre, venerá-la nos momentos de mais ínfima existência, no banho, na cozinha, na sala, no sofá.

Fez o pedido nos moldes dos velhos filmes românticos: parou, encarou-a com firmeza, ajoelhou-se na areia, apresentou-lhe o anel de brilhante que surgia da pequena caixa aveludada, como uma flor que desabrochasse para colorir os dias de um jardim de inverno, e dela esperou que raiasse o mais belo sorriso, este que seria seu sol, seu conforto, seu desejo de vida. Ela irrompeu em lágrimas de felicidade: de sua vida, ela lhe disse, a mais doce parte estava ali, pedindo para fazer-lhe feliz. Foi o bastante para beijarem-se longa e apaixonadamente.

Separaram-se seis anos depois. Ronaldo, já um bem-sucedido diretor de uma empresa de tecnologia da informação, não resistiu aos acenos amorosos de Michelli, sua colega de trabalho. E Valéria mudou, como há de mudar o tempo os corpos.

Eu a conheci no Carnaval de 2005, dois meses depois da separação. Conversamos muito sobre tudo, bebemos, beijamo-nos. Ela me perguntou se eu já tivera um amor de carnaval. Disse que sim, uma vez. Ela brincou:

— Nenhum amor traz felicidade. É preciso ser feliz para ser feliz amando.

Dormimos juntos nessa noite. Alguns momentos são maiores que a própria vida, e eu ainda me lembro de seu doce cheiro de fruta vermelha.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Escadas

Desta sala, não há saída.
Depois da porta, só há escadas.
Uma descida, uma subida,
Outras portas e mais nada.

Na escada se esquiva,
À boca miúda falada,
O comentário da descida
Do fulano da outra quadra.

Mede-se, na escada,
A relevância das subidas:
Cicrano galgou degraus na vida
Mas beltrana continua desamparada.

E, por falar em vida,
Adeus, sala
— Ávida despedida.
Vou, que me aguardam,
Com sua alma decaída,
O pilotis e suas estradas.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os passarinhos de Serrambi

Cantam, na sonolência da tarde, o céu rubi,
Em galhos de árvores gigantes,
Os passarinhos de Serrambi,
Seus versos distantes.

“Esses cantos são pra ti”,
Tento ser galante.
Catarina sorri.

É bom ser amante
Ao som dos passarinhos de Serrambi.

Foto: Catarina de Queiroz