domingo, 22 de agosto de 2010

O filho torto

Foto: Malthus
Há tantas pedras, pai, e tantos nomes que não ouso chamar isso de pedra ou nome, tão intensa a cadência e o pulsar das cores do jardim, no canto do muro, que ela – magma – regava. E a água – pai – em correntezas exorbitantes e despreocupadas (lembro que pretendia, qualquer dia desses, falar da situação da água do mundo), e eu vinha já emocionado pelo silêncio dos escapes dos carros, uma trégua permitida nesse jardim, contrapondo a rua ao evangelho que falavas, eu tu ela eles e os outros sentados nas madeixas do nosso cordão umbilical, no teu colo – sei que ela gostava das coisas arrumadinhas, cada lance na sua hora –, quando procurei o calor e o conforto de tua réstia vi paredes úmidas, o musgo esverdeado do banquinho da cozinha, sussurrando um segredo que se estendia por todos os quarteirões e oitões que pude conceber, “no interior é assim, filho”, e eu quis partir, eu sozinho, subindo estas escadas, quase criança novamente, mas ainda me virei e vi a distância e a pedra da tua ausência – estranho voltar agora, eu sozinho ainda descendo essas escadas –, a mãe do lado direito, ela eu os outros não mudamos – pai ou pedra para quem falo agora? essa coisa sem nome que não pode ser grafada nos tijolos dos andaimes, no meu antigo quarto de dormir, “e também não quero, sabe, melhor seguir adiante”, nossas brigas são tão pequenas agora, e ando cheio dessas horas de vigília, não sei se descubro mais com as coisas que deixaste ou com as que escondeste dela esse tempo todo – eu tu ela os outros, pensei, pai, éramos eternos, como os evangelhos, e não como uma família qualquer –“no interior é assim, meu filho, a gente andava muito pra conseguir água”, e tu trouxeste isso, pai – água bebida compõe a gente –, essa ânsia que eu também carregava de sair de casa, como há quarenta anos tu saíste e todos estranharam a ausência dela – na poltrona da sala, a mãe se sentava todas as tardes para vigiar nosso dever de casa, ela os outros eu desenhando igrejas, pai, com a tua ausência, confessando os teus pecados, “trocar a família por uma rapariga de beira de estrada”, “no interior é assim, meu filho”, lembro vagamente disso e de São Marcos no banquinho, a Gênesis debaixo do braço, o novo e o velho eu ela os outros testemunhando a bondade, que só a bondade e a caridade poderiam te trazer de volta, a mãe na poltrona da sala, me vendo crescer odiando esse amor bondoso, queria o mundo – pai-pedra – que negaste (eu achava, pelo menos, hoje entendo), que eu cria escondido na tua ausência, digladiando-se a verdade e a poesia do amor – a partida do pai e a felicidade dele longe, nos braços da rapariga (hoje entendo, pai, hoje entendo; o amor tem seus contrários, mas a mãe não!, ainda perdoou quando voltaste), eu já estava longe, perdido no mundo, pedra, pai, foram mais de trinta anos no meio do mundo, quase treze detenções, mas cumpri o meu destino, minha ausência era a tua, eu imaginava, e minha morte não veio, tive chances, apanhei da polícia debaixo daquela ponte, engoli pedra, revolvi meu ódio contra tudo e jurei matar aqueles filhos da puta que me fizeram fêmea na prisão, à força, que eu não queria jamais ser a rapariga do pai, aquela égua que deixou a mãe distante, levantando a mão para esperar o retorno de Jeová, puta de pastor, ia lá em casa pra fazer culto particular, nada disso eu queria nem o senhor, pai, hoje entendo, mas não saberia te responder a isso que é sem nome, que é pedra, e que eu procurei tanto nos meus desertos, a vida tatuada em minhas vísceras vermelhas e já esverdeadas pelo mofo das virtudes que eu não tenho, pai, pedra, chão, perdão por não as ter, aliás, ou por não ter nenhuma daquelas coisas que o senhor falava para ela, eu os outros na mesa de jantar, tu, pai-mármore, a parábola do filho torto que era eu, saindo de casa pros braços do mundo, mas você ficaria orgulhoso de ver meus filhos crescendo, tenho minha casa, minha mulher, minha rapariga, tomo minha cachaça por aí, pai-pomes, a força, a semente, fé na eternidade, porque eu não suportaria olhar pros meus irmãos e não vê-la, os outros ela eu como hóspedes de Deus, sonho, enchente, berço debaixo da terra talhado por artesãos inauditos e que o tempo friamente resolveu te chamar fim.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Comentários Musicais

Em publicação recente sobre a vida e obra de Raimundo Carreiro, Anco Márcio, professor do Departamento de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, recorre a Eugênio Evtuchenko, “um esquecido poeta russo”, para lembrar que “A autobiografia de um poeta são seus próprios poemas”.

Em parte verdade – pois, tal como Anco, no mesmo texto, não desprezo outras fontes documentais, como entrevistas, artigos, cartas e a fortuna crítica sobre o autor –, esse axioma pode ser aplicado na apreciação da música: ouvir a obra de um autor é o primeiro passo para conhecê-lo.

Acho bem interessante conhecer trajetórias de vida, influências, o que um autor diz sobre si e o que se diz sobre ele. Uma obra artística não existe sem contexto. No entanto, sua força não pode ser mensurada apenas pelas referências externas.

É o caso de Victor Lemonte Wooten, multi-instrumentalista norte-americano e um dos baixistas mais premiados do mundo. Elogiado principalmente pelo seu virtuosismo, ouvir Wooten é uma experiência nova e instigante, pois sua musicalidade parece encerrar em si um significado novo para a música instrumental contemporânea. Reunindo uma miscelânea de tendências, Wooten criou um estilo próprio de tocar, extremo, no qual o signo musical se prolifera em frases, ritmos e harmonias pouquíssimo vistas em um baixo elétrico (aconselho uma busca rápida na internet para vê-lo tocando).

Wooten começou sua carreira na Wooten Brother Band, junto com seus quatro irmãos mais velhos Regi, Rudy, Roy e Joseph, seguindo depois para o aclamado Béla Fleck and the Flecktones, com o grande “banjista” Béla Fleck. Participou de outros grupos não menos importantes, como o Bass Extremes, o The Vital Tech Tones (com Scott Henderson e Steve Smiths), o Extration (junto com Greg Howe e Dennis Chambers) e o SMV (com os lendários Stanley Clarke e Marcus Miller). Sua carreira solo é marcada pelos discos A Show of Hands (1996), What Did He Say? (1997), Yin-Yang (1999), Live in America (2001), Soul Circus (2005) e Palmystery (2008). Do seu currículo, constam três prêmios de baixista do ano pela revista Bass Player e cinco prêmios Grammy Award.

Mas, como disse, as referências externas são só pistas. Assim, para apreciação do paciente leitor, disponibilizo neste post um versão acid jazz que o Béla Fleck and The Flecktones, banda que proporcionou visibilidade a Wooten, fez para um clássico dos Beatles, Michelle.

(Um curiosidade: o nome da marca do baixo do cara é Fodera. Coincidência?)