quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A porta aberta


Ao meu filho Cayan Dantas de Queiroz

Filho, para esperar o amanhecer
Postei-me à janela, atento.
Mas a noite é um evento
Que demora a acontecer.

O céu de tão longo tornou-se lento
E tão mais eu quisesse haver
A proximidade do alvorecer
Tão mais demorava-se o firmamento.

Por isso, filho, pintei esta porta
Aberta na parede, junto à janela,
Pedaço do mundo que me conforta.

Para nela poder ver os nossos sóis
E, ao querer, sempre ir por ela
A minha saudade fazê-la voz.

sábado, 27 de novembro de 2010

Comentários Musicais

Acabo de assistir ao documentário Metal – A Headbanger's Journey, um alucinante e informativo mergulho no mundo do heavy metal idealizado e concretizado pelo antropólogo canadense Sam Dunn (baixe aqui), e confesso que me senti compelido a escrever esse comentário musical. O tema? Adivinha!

O heavy metal, concordam vários especialistas no assunto (inclusive Sam), surgiu de uma transformação do rock’n’roll, estilo que envolve rock, punk, hard core e possui raízes blues e soul. Sua paternidade é controversa, visto que não se pode dizer ao certo qual o primeiro heavy metal da história. É no entanto quase consenso que o Black Sabbath, se não foi seu criador, foi quem configurou o estilo – ou seja, sem essa banda, não haveria o gênero.

Do final dos anos 1960, quando surgiu, até os dias de hoje, o barulho se dividiu em inúmeros subestilos, dentre os quais se destacam o glam metal, o thrash metal, o death metal (fodástico!), o doom metal e o black metal. Sua existência sempre foi cercada de lendas e fatos – estes, no mínimo, curiosos: quem nunca ouviu a clássica história da cabeça do morcego arrancada a dentadas pelo Ozzy, em pleno show, ou a entrada do Manowar para o Guiness como a banda mais barulhenta do mundo, ou a missa negra do LP do Venom, quando rodado ao contrário.

Histórias à parte, o fato é que o heavy metal se configura em um estilo musical bastante rentável e muito popular hoje em dia. Bandas como Iron Maiden, Megadeth, Metallica, Sepultura, Motörhead e AC DC, só para citar algumas, possuem um público tão grande quanto algumas bandas pop consagradas.

No mais, deixo-vos, pacientes leitores, com uma das músicas mais emblemáticas e estranhas do heavy metal, considerada por muitos o início de tudo: Black Sabbath, tocada pelo Black Sabbath.


domingo, 14 de novembro de 2010

O amor


* Publicado originalmente no livro Lua de Iêmen, Lua de Bengala

Olhava ainda o corpo desnudo ao meu lado, a pele branca reluzindo a última hora de nossos seres em movimento frenético, e o delírio de amar explodia em jatos de olhares perdidos na penumbra do quarto. Um olhar de amor sempre parece perdido e distante, porque olha antes pra dentro de si, onde existe realmente o mundo, e não para algo exterior; pensei isso ao lembrar de seus olhares dirigidos a mim e imaginei se eu os teria também já lançado a alguém. E não sabia se já havia amado alguém com intensidade, porque não sei até qual intensidade vai o amar alguém. Amei muitas vezes e, talvez por isso mesmo, nenhuma. E olhava ainda o corpo desnudo e imóvel ao meu lado e me perguntei quantos corpos esse corpo já havia amado, e o amargo de seu suor em minha boca tomou proporções imensas e senti ciúmes de saber que possivelmente muitos. E me perguntei se eram melhores e maiores e mais profundos e me senti pequeno porque tinha certeza de que foram mais importantes e minha mão não ousou tocar sua pele.

Mas foi então que percebi, olhando-a detalhadamente, que não havia marcas de outras mãos e também não cheiro de outro que não eu ou ela e no fundo de suas retinas só conseguia enxergar o meu reflexo e por alguns instantes vi o quando fora inútil o divagar sobre o passado de alguém, já que as insígnias de pecados outrora cometidos são rastros indeléveis mas indecifráveis e não são vistos a olho nu, habitando antes a universal vermelhidão do peito interior do que cartazes ou sorrisos.

E me reconfortei no macio de suas carnes por saber que sendo o amor agora eu o seria sempre e único e que a eternidade era feita de noites acopladas uma a uma e cada uma como sendo única, formando um todo inconsútil chamado vida, e quantas noites seriam necessárias para construir um arquétipo de felicidade?, eu não sabia, mas sabia que aprendemos a ser felizes à medida que conhecemos a noite e mesmo estando sós vivemos uma noite interior, uma obscura sensação de vazio em nossas mãos e pensei que talvez por ter havido outras noites e outras palavras sussurradas em meus e seus ouvidos nós havíamos decidido que enquanto fosse possível nós nos congratularíamos nus e felizes, porque eu também havia pensado que o amor é um imenso espelho do ego e, como tal, só poderia preencher os espaços a ele adequados, que só amamos aquilo que nos faz bem e por isso acabamos amando uma extensão do nosso próprio ser, amando nosso próprio ser. E pensei ser esse um mecanismo necessário à felicidade, um mecanismo que subsiste além do que sentimos ou vivemos ou pensamos, uma construção sobre a areia de nossos planos. Porque poderia ser a felicidade um pequeno pedaço de noite que se juntaria a outro depois e no pesar do final imposto caberia à nossa consciência dizer se somos felizes ou se foi tudo ilusão, porque a vida era uma ilusão, não sei a felicidade. Por ser tão sutil a felicidade ligada ao amor, pois quando estamos amando nos sentimos completos mas sempre uma ausência, polícia, erro ou desilusão nos torna incompletos, acabamos temendo o final da noite e com ele o simples levantar e o partir sem um aceno, tornando a vida um caminho entrecruzado de várias direções, um corpo sempre em rota de colisão, até que nos chegue um novo atalho. Esse corpo desnudo ao meu lado era um.

E quando víssemos o andar juntos mas não sós impossível, haveríamos de criar uma outra cicatriz em nossas almas e um novo atalho. Mas me confortei por saber que era o seu eterno e único amor hoje e o amanhã era feito com um pedaço do hoje e o depois com um pedaço do amanhã e assim eu habitaria sua memória até que um gigante de peso e tamanho descomunal nos cruzasse o atalho e esmagasse fores e espinhos e pegadas e tudo o que deixamos cair porque nos abraçávamos e não importava mais nada e então eu me senti gigante, eu que já havia sido para esse corpo, haveria de ser para outros.

E nessa noite, quando ainda olhava esse corpo nu e deleitado, imaginei que havia descoberto algo sobre o amor e a vida, pensando em mim e nela como dois caminhos que se cruzaram, duas estradas que formavam cordilheiras pelos lados, onde os dias se amontoavam como pedras e rolavam no abismo da memória para ser felizes também, esquecidos, de mãos dadas a outros dias pedras.

Quase sem perceber, meus olhos se fecharam numa sequência em que eu lutava para mantê-los abertos e continuar olhando aquele corpo, pois agora eu já não me continha nos meus átomos, eu trespassava a matéria e fingia com muita convicção, atuando antes pode-se dizer, que eu era feliz, considerando a felicidade um estado de espírito e não uma temporalidade infinita. E já estava tão alto nas elipses de meus pensamentos que julguei que não mais a via e percebi que não tinha nada nas mãos nem no corpo, nem roupas, dinheiro e meu rosto era uma profusão de estrelas e luas que existiam sempre sem nunca ofuscarem umas às outras, eu que nada trouxera nas mãos dormia e deixava o corpo exausto e desnudo ao meu lado sem respostas e subia, subia, subia, até onde o tempo, amor ou ilusão são todos fantasmas de um mesmo sentimento: o desejo libertado.

domingo, 31 de outubro de 2010

Mundo Contemporâneo


Alô, Aninha?

É, sim. Quem é?

Sou eu, Aninha.

Eu quem?

Ó, eu sei que você está chateada comigo, e antes de mais nada eu quero te falar uma coisa.

Quem tá falando?

Aninha, eu queria que você soubesse que o lance que rolou entre a gente foi muito especial, mas é que eu não tou a fim de envolvimento sério.

E quem tá falando, por favor?

Eu sei também que você queria algo mais duradouro, tipo um compromisso, mesmo. Mas é que realmente eu saí recentemente de um relacionamento complicado e...

Olha, seja lá quem for, eu vou desligar se não disser quem é.

É o Bruno quem tá falando.

Bruno...? Bruno...? Ah, tá. Bruno. Tudo bem?

Tudo bem. Mas como eu ia te falando, eu realmente queria que você soubesse que você é uma mina especial, mas eu preciso de um tempo pra mim, entendeu?

Sim, claro, Bruno. Eu entendo perfeitamente. Não esquenta, não. A gente ficou, mas sem cobranças.

Por isso que eu tou te ligando. Por que eu sei que você queria um compromisso.

Não, eu não queria.

Queria, sim. Eu sei que queria. E eu gosto muito de você, mas é que esse relacionamento que eu saí foi muito complicado, entendeu?

Bruno, não esquenta comigo. Eu estou ótima.

Eu sei que você não está. Você está chateada comigo. E foi por isso que eu liguei.

Bruno, não se preocupe. Eu entendo.

Mas eu preciso que você entenda que não é você, sou eu, entendeu?

Claro. Não precisava nem ligar pra dizer isso.

Precisava, porque sei que você esperava mais do nosso lance.

Não, eu não esperava.

E também não fica pensando que eu sou um canalha, que eu só queria me divertir com você. Não é isso.

Eu sei, Bruno. Olha, vamos combinar uma coisa: eu não fico chateada com você, e você não liga pra falar mais disso, ok?

Tudo bem. Mas eu espero que a gente possa ser amigo quando essa raiva passar.

Bruno, pela última vez, eu não estou com raiva, não estou decepcionada, não vou me jogar da ponte. Para de dizer isso, por favor!

Tá vendo como você está chateada!

(Ouve-se a voz de Aninha ao fundo) Ai, meu Deus! (Voz de Aninha na altura normal) Bruno, eu vou ter que desligar. É que eu estou dirigindo.

Tudo bem, mas me prometa que você vai ficar bem.

(Silêncio. Bruno olha pro amigo ao lado)

É uma mina lá do Recife. Tá louca por mim, cara! Mas tá broncada porque eu não quero nada sério. Essas mina, vou te contar, meu! Tudo louca!

sábado, 16 de outubro de 2010

Língua em foco

Uma das grandes facetas da dita boa literatura é a atemporalidade, ou seja, a capacidade de ser apreciada em vários momentos da história e por gerações diferentes. E uma das garantias da atemporalidade, especialmente em tempos de “blogalização”, é a velha e darwiniana capacidade de adaptação.

Primeira publicação interativa brasileira para iPad, o livro A menina do narizinho arrebitado parece estar se adaptando bem aos novos tempos. Lançada 90 anos depois de sua primeira edição impressa, a versão eletrônica para iPad traz novidades, como a possibilidade de interação com elementos da tela. Conforme explica Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, “Em uma das passagens, durante a noite, o leitor clica com a ponta dos dedos na tela do tablet, em cima do desenho de um vagalume, e, ao arrastar o personagem, ilumina as áreas onde está o texto”.

O e-livro foi apresentado na 21a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que ocorreu em agosto de 2010, e terá uma versão gratuita e uma paga – esta poderá ser adquirida na AppStore do iPad e nas livrarias virtuais Saraiva e Gato Sabido.

Foto: g1.globo.com
A novidade é mais uma prova de que, em literatura, nada se acaba, tudo se transforma.

domingo, 3 de outubro de 2010

Futuro do presente

Chega de futuro!
Quero o presente
Mesmo o que se sente
No escuro.

Sem planos.
Se possível
Quero o inverossímil
O profano.

Dois mil e cem
Dormia.
E nem havia
Dois mil e cem ainda.

Sem estigma,
Que meu futuro ausente
Dê passagem ao presente
Sem enigmas.

Apenas
Puro, simplesmente,
Quero agora
O que será passado no futuro
                        E também presente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

10 coisas que você nunca pode deixar de fazer na sua vida

1. Brincar com seus filhos
Filhos, quando bem criados, são uma doce dor de cabeça, a sua continuidade existencial na efêmera passagem pela Terra, a gárrula transgressão à onipotência do esquecimento (me empolguei). Por isso, uma horinha de brincadeira todo dia vai fazer bem a você e a eles: a você, por te proporcionar uma volta à infância (para resolver pendências ou reviver velhos e bons tempos); a eles, por construir boas lembranças para o futuro.
 
 
2. Brincar com seu cachorro ou gato (ou jiboia, lagarto, iguana...)
Gato cearense brincando com o dono
Dedicar uns minutinhos a quem sempre te honrou com devoção quase incondicional também faz bem para você e para seu bichinho. Afinal, para que você resolveu viver com esse animal (estou falando com o bicho).

3. Sorrir
Sorrir faz muito bem. Exercita os músculos do rosto, prevenindo o envelhecimento, desestressa e torna os problemas menores. Só tenha cuidado para não exagerar e ficar às gargalhadas quando a privada entupir.

4. Chorar
Apesar de o mundo cobrar sempre que você seja o(a) melhor, o sucesso, o bem-sucedido, dirija o melhor carro, compre mais e melhor, as pequenas e até as grandes desventuras são elementos constituintes da felicidade. São elas que nos levam a questionamentos muitas vezes importantíssimos em nossas vidas. Por isso, arranje um tempinho para chorar quando achar que deve, pois ajuda a aliviar a alma. Porém, mais uma vez, não exagere, para não se tornar um xarope com prazo de validade vencido.

5. Amar
Já dizia o poeta: “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”. Amar é o princípio de tudo: da gentileza, do bom humor, da saúde, do crescimento pessoal, da cabeça boa. Amar no sentido amplo, claro!, como se ama a(o) sua(seu) companheira(o), os amigos, os parentes, a natureza. Só tenha cuidado para não ser amoroso em excesso, do tipo: “Olha, um cocozinho de cachorro na porta da minha casa! Que lindo! Amo vocês, cachorrinho e cocozinho”. Não pega bem, né?

6. Fazer sexo

Polêmico. Muitos diriam esse tópico deveria estar em Amar. No entanto, como os(as) pacientes leitores(as) desse blogue já são maiores de idade, podemos falar abertamente: nem sempre a gente ama quando faz sexo ⎯ o que, obviamente, não deixa de ser saudável. Então, o conselho é: seja amor, seja sexo, vá em frente (depois para trás, depois para frente, depois para trás, depois para frente...)!

 
7. Praticar atividade física
O corpo, como você já deve ter percebido, fica adiposo e disforme quando não se pratica nenhuma atividade física. E o mais incrível é que existem muitas atividades saudáveis para você evitar distorções indesejadas no espelho: caminhada, bicicleta, corrida, boliche, futebol, vôlei, tênis, skate, musculação, aeróbica, montanhismo, rapel... Mas atenção: não valem levantamento de copo, arremesso de bituca de cigarro, escravo de jó e outros do gênero.

8. Estar entre amigos
Turminha da facul em trajes típicos para biritar no Bigode

Estar entre amigos é uma atividade muito prazerosa ⎯ embora quase sempre implique ressaca. É com os amigos que você se informará sobre as últimas coisas inúteis da internet, que você ficará sabendo o que fez aquele amigo que não está presente, que você se inteirará sobre as mais novas piadas da moda, que você saberá o que se anda lendo e quais lugares estão sendo considerados descolados. Por isso, sempre que você puder, esteja entre amigos, de preferência na mesa do bar, local onde brotam assuntos jamais observados em outros ambientes.


9. Estar só
Estar só quando não se quer é terrível. Porém, estar só por opção é ótimo. Experimente um tempo a sós com você mesmo, escute seus silêncios, suas músicas, seus vídeos porn... quer dizer, preferidos. Você vai se surpreender em saber como você é estranho. E mais ainda em saber que todos são. Porém, mais uma vez, cuidado com exageros: o último amigo meu que resolveu morar só para se conhecer melhor fugiu de casa.

10. Ler o Diário das Marés

O mais evidente de todos os tópicos, não merecendo inclusive nenhum texto complementar. No entanto, é importante salientar que outras leituras igualmente cultas também são válidas, como Guimarães Rosa, Machado de Assis, Raduan Nassar, Miltom Hatoum, Dostoiévski, Jorge Luís Borges e, obviamente, a lista de blogues aqui ao lado.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Nova expressão

A arte que germina ainda
Em forma indefinida e
Silenciosa adorna e incita
Pré-grito em gargante desatenta.

Lenta levanta e calma
Desatina o erudito
Um mito que se isenta na surdina
Da palma da mão.

Como um não em sala unânime
Será escrita em verso inverso
A prova cabal será a prosa
Uma rosa que não cala e vibra

E depois do depois de amanhã
Como velhos revolucionários
Serenos na mudez do tempo já passado
Até que nós se restem, apenas,
A veste
         a voz
                palavra
                            e vento.

* Poema publicado no livro Lua de Iêmen, Lua de Bengala.

domingo, 22 de agosto de 2010

O filho torto

Foto: Malthus
Há tantas pedras, pai, e tantos nomes que não ouso chamar isso de pedra ou nome, tão intensa a cadência e o pulsar das cores do jardim, no canto do muro, que ela – magma – regava. E a água – pai – em correntezas exorbitantes e despreocupadas (lembro que pretendia, qualquer dia desses, falar da situação da água do mundo), e eu vinha já emocionado pelo silêncio dos escapes dos carros, uma trégua permitida nesse jardim, contrapondo a rua ao evangelho que falavas, eu tu ela eles e os outros sentados nas madeixas do nosso cordão umbilical, no teu colo – sei que ela gostava das coisas arrumadinhas, cada lance na sua hora –, quando procurei o calor e o conforto de tua réstia vi paredes úmidas, o musgo esverdeado do banquinho da cozinha, sussurrando um segredo que se estendia por todos os quarteirões e oitões que pude conceber, “no interior é assim, filho”, e eu quis partir, eu sozinho, subindo estas escadas, quase criança novamente, mas ainda me virei e vi a distância e a pedra da tua ausência – estranho voltar agora, eu sozinho ainda descendo essas escadas –, a mãe do lado direito, ela eu os outros não mudamos – pai ou pedra para quem falo agora? essa coisa sem nome que não pode ser grafada nos tijolos dos andaimes, no meu antigo quarto de dormir, “e também não quero, sabe, melhor seguir adiante”, nossas brigas são tão pequenas agora, e ando cheio dessas horas de vigília, não sei se descubro mais com as coisas que deixaste ou com as que escondeste dela esse tempo todo – eu tu ela os outros, pensei, pai, éramos eternos, como os evangelhos, e não como uma família qualquer –“no interior é assim, meu filho, a gente andava muito pra conseguir água”, e tu trouxeste isso, pai – água bebida compõe a gente –, essa ânsia que eu também carregava de sair de casa, como há quarenta anos tu saíste e todos estranharam a ausência dela – na poltrona da sala, a mãe se sentava todas as tardes para vigiar nosso dever de casa, ela os outros eu desenhando igrejas, pai, com a tua ausência, confessando os teus pecados, “trocar a família por uma rapariga de beira de estrada”, “no interior é assim, meu filho”, lembro vagamente disso e de São Marcos no banquinho, a Gênesis debaixo do braço, o novo e o velho eu ela os outros testemunhando a bondade, que só a bondade e a caridade poderiam te trazer de volta, a mãe na poltrona da sala, me vendo crescer odiando esse amor bondoso, queria o mundo – pai-pedra – que negaste (eu achava, pelo menos, hoje entendo), que eu cria escondido na tua ausência, digladiando-se a verdade e a poesia do amor – a partida do pai e a felicidade dele longe, nos braços da rapariga (hoje entendo, pai, hoje entendo; o amor tem seus contrários, mas a mãe não!, ainda perdoou quando voltaste), eu já estava longe, perdido no mundo, pedra, pai, foram mais de trinta anos no meio do mundo, quase treze detenções, mas cumpri o meu destino, minha ausência era a tua, eu imaginava, e minha morte não veio, tive chances, apanhei da polícia debaixo daquela ponte, engoli pedra, revolvi meu ódio contra tudo e jurei matar aqueles filhos da puta que me fizeram fêmea na prisão, à força, que eu não queria jamais ser a rapariga do pai, aquela égua que deixou a mãe distante, levantando a mão para esperar o retorno de Jeová, puta de pastor, ia lá em casa pra fazer culto particular, nada disso eu queria nem o senhor, pai, hoje entendo, mas não saberia te responder a isso que é sem nome, que é pedra, e que eu procurei tanto nos meus desertos, a vida tatuada em minhas vísceras vermelhas e já esverdeadas pelo mofo das virtudes que eu não tenho, pai, pedra, chão, perdão por não as ter, aliás, ou por não ter nenhuma daquelas coisas que o senhor falava para ela, eu os outros na mesa de jantar, tu, pai-mármore, a parábola do filho torto que era eu, saindo de casa pros braços do mundo, mas você ficaria orgulhoso de ver meus filhos crescendo, tenho minha casa, minha mulher, minha rapariga, tomo minha cachaça por aí, pai-pomes, a força, a semente, fé na eternidade, porque eu não suportaria olhar pros meus irmãos e não vê-la, os outros ela eu como hóspedes de Deus, sonho, enchente, berço debaixo da terra talhado por artesãos inauditos e que o tempo friamente resolveu te chamar fim.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Comentários Musicais

Em publicação recente sobre a vida e obra de Raimundo Carreiro, Anco Márcio, professor do Departamento de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, recorre a Eugênio Evtuchenko, “um esquecido poeta russo”, para lembrar que “A autobiografia de um poeta são seus próprios poemas”.

Em parte verdade – pois, tal como Anco, no mesmo texto, não desprezo outras fontes documentais, como entrevistas, artigos, cartas e a fortuna crítica sobre o autor –, esse axioma pode ser aplicado na apreciação da música: ouvir a obra de um autor é o primeiro passo para conhecê-lo.

Acho bem interessante conhecer trajetórias de vida, influências, o que um autor diz sobre si e o que se diz sobre ele. Uma obra artística não existe sem contexto. No entanto, sua força não pode ser mensurada apenas pelas referências externas.

É o caso de Victor Lemonte Wooten, multi-instrumentalista norte-americano e um dos baixistas mais premiados do mundo. Elogiado principalmente pelo seu virtuosismo, ouvir Wooten é uma experiência nova e instigante, pois sua musicalidade parece encerrar em si um significado novo para a música instrumental contemporânea. Reunindo uma miscelânea de tendências, Wooten criou um estilo próprio de tocar, extremo, no qual o signo musical se prolifera em frases, ritmos e harmonias pouquíssimo vistas em um baixo elétrico (aconselho uma busca rápida na internet para vê-lo tocando).

Wooten começou sua carreira na Wooten Brother Band, junto com seus quatro irmãos mais velhos Regi, Rudy, Roy e Joseph, seguindo depois para o aclamado Béla Fleck and the Flecktones, com o grande “banjista” Béla Fleck. Participou de outros grupos não menos importantes, como o Bass Extremes, o The Vital Tech Tones (com Scott Henderson e Steve Smiths), o Extration (junto com Greg Howe e Dennis Chambers) e o SMV (com os lendários Stanley Clarke e Marcus Miller). Sua carreira solo é marcada pelos discos A Show of Hands (1996), What Did He Say? (1997), Yin-Yang (1999), Live in America (2001), Soul Circus (2005) e Palmystery (2008). Do seu currículo, constam três prêmios de baixista do ano pela revista Bass Player e cinco prêmios Grammy Award.

Mas, como disse, as referências externas são só pistas. Assim, para apreciação do paciente leitor, disponibilizo neste post um versão acid jazz que o Béla Fleck and The Flecktones, banda que proporcionou visibilidade a Wooten, fez para um clássico dos Beatles, Michelle.

(Um curiosidade: o nome da marca do baixo do cara é Fodera. Coincidência?)