quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 amar

                de repente assim rebento

como a luz do sol nascendo o mar

                amar imenso

 

também amar o pequeno

                mergulho provisório

amar os fluidos

                               flatos abraços o tédio a fúria

                                               o amargo

                amar cura

 

descortinando grutas submersas

dissimulando desvendar mistérios

               

mesmo pouco amar o tempo

     e no limite do fôlego

              até o mais em nós atento

                   amar profundamente adentro

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Futuro

 o futuro pode ser lindo

sentaremos a uma grande mesa

                               compartindo

negrxs, pardxs, amarelxs

                bichas, sapas, héteros

sonhos comuns ao planeta

 

                               pode ser

 

por enquanto, temos

rifles e supremacistas

desfile de polícia aos trancos

marcha pacífica à mira

pretos e prantos

 

tudo pode ser lindo

mas temo

secretamente

que o futuro seja um plano

                               continuado do presente

sábado, 15 de agosto de 2020

Assalto

Rua pouco movimentada no Recife, começo da noite. Uma mulher anda apressada, quando surgem dois homens.

— Passa o celular!

Ela, tomada de susto:

— Calma, moço, vou passar.

— Anda, passa logo!

— Vou passar, moço, calma. Mas, antes, o senhor poderia se afastar um pouco.

— Quê!?

— Se afastar (repete enfatizando a pronúncia das sílabas por baixo da máscara).

Os homens se olham confusos. Ela continua.

— Um metro e meio, no mínimo. Distância segura.

— A senhora tá doida, é? Distância segura de quê?

— Meu filho, você vive na lua? Distância segura do corona.

O outro dá uma risada nervosa.

— Do quê?!

— Do coronavírus.

— Que corona o quê, minha senhora. Passa logo esse celular!

— Eu já disse que vou passar. Só quero que vocês mantenham uma distância segura...

— A senhora é doida mesmo, viu! Tá querendo problema, é?

O outro emenda:

— Além do mais, esse negócio de corona é coisa de comunista! Eu tou ligado na senhora!

— Engano seu, meu amigo. Isso é uma questão mundial de saúde.

— De saúde o quê, minha senhora. Isso é mentira da mídia, da Globo. Querem é derrubar o cara...

— Você é que pensa! Tem um monte de gente morrendo... (Ela altera a voz. O mais alto reage com firmeza:)

— Calminha aí, segura tua onda.

— Eu estou calma. Só quero que as coisas corram em segurança.

— Ó, seguinte: vamo parar com a brincadeira e resolver isso logo, com corona ou sem corona: passa o celular! (Enfatiza a pronúncia das sílabas.)

— Vou passar, mas o senhor pode virar o rosto pra lá quando falar? Pra não respingar saliva... (Enquanto diz isso, afasta os dois com a mão.)

— Mas a senhora é abusada, né não? Passa logo esse celular.

Ela tira o celular da bolsa e já ia entregando, quando:

— Eita, ia esquecendo.

Tira da bolsa um spray, espraia no celular.

— Que porra é isso? — o mais baixo fala, com cara de incrédulo.

— Álcool 70%. Me dá a mão.

Os dois estão atônitos.

— Anda, me dá a mão!

Olham-se; sem saber o que fazer, esticam a mão. Ela espraia o álcool e entrega o celular.

— Agora, sim.

Eles pegam o celular. E, antes de ir:

— Vou lhe dizer uma coisa, minha senhora: minha saúde está perfeita. Nem uma tossezinha. Nem um espirro.

Ela devolve.

— Mas eu não. Fui diagnosticada com covid-19 hoje. Estou assintomática.

Desconfiados, os dois dão um passo pra trás.

— Espero que senhora fique bem.

— Eu também — diz ela, olhando-os enquanto correm.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Da série “tweets para a posteridade imediata”

Amigo meu esqueceu o celular no Uber ontem. Hoje de manhã cedo, o cara devolveu. E recusou os 50 reais de recompensa. Essas coisas nos fazem ainda crer na humanidade.

Pelo menos, até meio-dia. Depois, passa.

terça-feira, 9 de junho de 2020

La pandemia va

Alana ouviu a buzina.

— Meu deus, já? — disse em voz alta. Jogou a toalha na cama, pegou o vestido, pôs os sapatos. No espelho, passou batom apressadamente, ajeitou os cabelos. Nova buzina.

No carro, Juan falou, com algum sarcasmo:

— Algumas coisas nunca mudam.

Meia hora depois, estavam na fila de espera do restaurante.

— Parece que todo mundo teve a mesma ideia — comentou Alana, distraída. Juan bufou um monossílabo concordando. E, à medida que o tempo passava, esvaía-se também sua paciência. Logo estava andando para lá e para cá, tentando negociar um lugar à frente na fila, ao que a recepcionista recusou, fingindo não ter entendido. E, depois de longos cinquenta minutos de espera e uma fila ainda desconvidativa, desistiram, voltando para casa e para o tradicional pizza e vinho comprado num supermercado próximo.

O amor foi a sobremesa da fome. Despidos e cansados, Alana falou, leve:

— Você acha que o mundo será diferente, agora que vencemos essa pandemia?

Juan não respondeu; cochilava na cama. Alana, acostumada, não se importou, e leve ainda:

— Sei lá... sinto que as pessoas serão diferentes...



quinta-feira, 28 de maio de 2020

O espelho que há na noite


Quando despertar a alta madrugada

Na contramão dos relógios ocupados

Veste em ti o homem insondável

E adentra resoluto as incertezas

 

Contempla o mistério urdido

No eco das palavras arbitrárias

E como colhesse a erva e o trigo

Arranca do escuro as cores impensáveis

 

Para compor teu espelho irrevelado

Imagem que furtiva te decifra

Quadro retocado do teu rosto

 

E rosto e quadro retocados

Ressoa à sombra teu repouso

Na espera e limiar do próximo traço.


domingo, 10 de maio de 2020

A liberdade que tardia


Neste sofá, de quarentena

Enquanto passa a pandemia

Vejo a tarde, que vadia

Do horizonte me acena.

 

Tem a tarde essa alegria

E a leveza de uma pena

Pinta o céu de açucena

Como fizesse uma poesia

 

Me alegro com essa cena

Que no céu se avia.

Com a alma mais serena

 

Eu, que triste ia

Embalo agora esse poema:

A liberdade que tardia.